đ- O EX-JUIZ AGIU COMO DE HĂBITO, CRIANDO UMA ZONA CINZENTA ENTRE LEGALIDADE E ILEGALIDADE, CONSTITUCIONALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE.
Por Sergio Tuthill Stanicia
Na quinta-feira 25, o ministro da Justiça e Segurança PĂșblica, SĂ©rgio Moro, editou a Portaria nÂș 666, que regula “o impedimento de ingresso, a repatriação, a deportação sumĂĄria, a redução ou cancelamento do prazo de estada de pessoa perigosa para a segurança do Brasil ou de pessoa que tenha praticado ato contrĂĄrio aos princĂpios e objetivos dispostos na Constituição Federal”.
Do ponto de vista polĂtico, causa estranheza que a portaria foi editada num contexto em que, desde 9 de junho, vĂȘm sido divulgadas conversas altamente comprometedoras envolvendo SĂ©rgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, para cuja divulgação o principal responsĂĄvel Ă© um renomado jornalista estrangeiro: o estadunidense Glenn Greenwald.AlĂ©m disso, ao longo da Ășltima semana, observou-se toda a pirotecnia envolvendo a prisĂŁo pela PolĂcia Federal de quatro supostos hackers que teriam invadido celulares de diversas autoridades, incluindo o ministro da Justiça.
Por outro lado, ainda que se abstraĂsse do contexto polĂtico e se observasse apenas o aspecto tĂ©cnico-jurĂdico, o conteĂșdo da portaria tambĂ©m causaria estranheza.
A Lei de Migração prevĂȘ trĂȘs modalidades de retirada compulsĂłria do estrangeiro no paĂs, a repatriação, a deportação e a expulsĂŁo. A portaria de Moro nĂŁo trata da expulsĂŁo, mas da repatriação e da deportação.
A repatriação Ă© a devolução da pessoa em situação de impedimento de ingresso. Ă o caso, por exemplo, do estrangeiro que chega a um aeroporto brasileiro e Ă© barrado pelas autoridades migratĂłrias, sendo obrigado a retornar ao paĂs de origem.
A deportação Ă© a retirada de pessoa que jĂĄ se encontre dentro do paĂs, mas que esteja em situação migratĂłria irregular, como, por exemplo, com visto vencido. A deportação exige procedimento administrativo prĂ©vio, com as garantias do contraditĂłrio e ampla defesa, e direito a recurso com efeito suspensivo.
A expulsão é a retirada compulsória, conjugada ao impedimento de reingresso por prazo determinado, do estrangeiro que cometeu determinados crimes considerados especialmente graves, com sentença condenatória transitada em julgado.
Com relação Ă deportação, a Lei de Migração prevĂȘ que deve ser precedida de notificação pessoal ao deportando, da qual conste, expressamente, as irregularidades verificadas e prazo para a regularização nĂŁo inferior a 60 dias, podendo ser prorrogado por igual perĂodo.
De acordo com a Lei, o prazo pode ser reduzido caso a pessoa “tenha praticado ato contrĂĄrio aos princĂpios e objetivos dispostos na Constituição Federal”, e o Regulamento, um decreto de Michel Temer de 2017, estabelece a competĂȘncia do ministro da Justiça para fazĂȘ-lo.
Foi com base no Regulamento que Moro criou a “deportação sumĂĄria”. Os prazos sĂŁo exĂguos: 48 horas para apresentação de defesa e 24 horas para apresentação de recurso, o que, na prĂĄtica, pode prejudicar e mesmo inviabilizar as garantias de contraditĂłrio e ampla defesa.
AlĂ©m disso, o que significariam esses atos contrĂĄrios Ă Constituição? Ă uma expressĂŁo vaga demais, e essa mĂĄ tĂ©cnica legislativa criou uma brecha, que foi habilmente aproveitada na edição da Portaria nÂș 666 para determinar a tal deportação sumĂĄria de “pessoas perigosas”.
O conceito de “pessoa perigosa” foi extraĂdo da Lei Brasileira de RefĂșgio, Ă qual a portaria nÂș 666 faz referĂȘncia expressa. Trata-se tambĂ©m de conceito extremamente vago e previsto pela lei somente aos refugiados, vedando-lhes a permanĂȘncia no territĂłrio nacional e o pedido de refĂșgio. A portaria de SĂ©rgio Moro estranhamente estendeu essa noção a todo e qualquer estrangeiro, em evidente ampliação do sentido da lei.
Além disso, para que um estrangeiro seja considerado perigoso nos termos da portaria, não é necessåria uma condenação penal transitada em julgada. Basta que se trate de pessoas suspeitas de envolvimento em terrorismo, grupo criminoso organizado ou associação criminosa armada ou que tenha armas à disposição, entre outras hipóteses.
Parece estratégica a razão pela qual portaria tratou da deportação e não da expulsão. A Lei de Migração deixa uma zona cinzenta entre as hipóteses de deportação e expulsão, principalmente ao prever a redução do prazo para aquela em caso de contrariedade à Constituição. Caso se resolvesse aplicar a expulsão para as pessoas definidas como perigosas, a portaria seria flagrantemente ilegal, pois contrariaria a regra do trùnsito em julgado da sentença penal, que inexiste na Lei de Migração para a deportação.
Nos termos da portaria, basta uma suspeita, que pode vir de informação de inteligĂȘncia proveniente de autoridade brasileira ou estrangeira ou de investigação criminal em curso. Deve-se deixar claro, todavia, que embora a Lei de Migração nĂŁo exija explicitamente o trĂąnsito em julgado para a deportação, a portaria contraria a garantia constitucional de que ninguĂ©m serĂĄ considerado culpado atĂ© o trĂąnsito em julgado de sentença penal condenatĂłria.
Por fim, a portaria deixa dĂșvidas sobre o conceito de “grupo criminoso organizado”, que tambĂ©m parece vago demais. A legislação brasileira prevĂȘ a associação criminosa, que Ă© a antiga quadrilha ou bando, e a organização criminosa. O conceito de “grupo criminoso organizado” estĂĄ na Convenção das NaçÔes Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, que, embora promulgada por decreto presidencial de 2004, em nenhum momento Ă© citada pela portaria.
Tudo isso deixa claro que SĂ©rgio Moro agiu como de hĂĄbito, manobrando brechas legislativas e conceitos vagos que acabam por criar uma zona cinzenta entre legalidade e ilegalidade, constitucionalidade e inconstitucionalidade. Fonte "CartaCapital"
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